O site do Escritório Caldas & Advogados Associados utiliza cookies e outras tecnologias necessárias para preservação do site, isso nos ajuda a melhorar sua experiência, personalizar nossos serviços e recomendar conteúdo de seu interesse. Confira nossa Política de Privacidade , se você concorda com a utilização de cookies, clique em: Estou ciente
CONTATE-NOS: (21) 3161-2171 / 96815-5665

BLOG

Home > Blog > CIVEL > MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: DECRETO (10.977/22) ESTIMULA VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS CONTRA AS PESSOAS QUE APRESENTAM UM SEXO REGISTRAL DIFERENTE DA SUA IDENTIDADE E EXPRESSÃO DE GÊNERO
CIVEL

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: DECRETO (10.977/22) ESTIMULA VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS CONTRA AS PESSOAS QUE APRESENTAM UM SEXO REGISTRAL DIFERENTE DA SUA IDENTIDADE E EXPRESSÃO DE GÊNERO

Por MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL: DECRETO (10.977/22) ESTIMULA VIOLAÇÕES DOS DIREITOS HUMANOS CONTRA AS PESSOAS QUE APRESENTAM UM SEXO REGISTRAL DIFERENTE DA SUA IDENTIDADE E EXPRESSÃO DE GÊNERO

Nota técnica do Ministério Público Federal manifesta entendimento no sentido de que o novo modelo de Carteira de Identidade, aprovado em decreto (10.977/22) pela presidência da República, estimula a violação de direitos humanos a quem utiliza nome social, uma vez que o novo modelo estabelece que o nome de registro deve vir antes do nome social, devendo existir a inserção do sexo (aparentemente biológico).

De acordo com o entendimento da procuradoria Federal dos direitos do cidadão e a coordenação do Grupo de Trabalho de Populações LGBTI, “o fato de o nome de registro passar a compor o mesmo espaço do nome social, em posição de destaque, aliado à limitação da solicitação de inclusão do nome social à base da receita federal, intensifica a repulsa da iniciativa”.

Nesse sentido, a NOTA TÉCNICA PFDC nº 4/2022 a exigência do em decreto (10.977/22) estimula violações dos direitos humanos contra as pessoas que apresentam um sexo registral diferente da sua identidade e expressão de gênero. Esse constrangimento atingiria, principalmente, as pessoas trans, sobretudo aquelas que não querem ou têm dificuldades em realizar as mudanças relativas ao nome e/ou gênero registral.

Segue a integra da NOTA TÉCNICA PFDC nº 4/2022 no anexo.

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO

NOTA TÉCNICA PFDC nº 4/2022

Assunto: Requisitos para a expedição da Carteira de Identidade por órgãos de identificação dos Estados e do Distrito Federal. O direito à autodeterminação identitária da população LGBTI+. Inconstitucionalidade e inconvencionalidade dos critérios previstos no Decreto nº 10.977, de 23 de fevereiro de 2022.

Conforme amplamente veiculado na imprensa nacional, o Decreto Presidencial nº 10.977, de 23 de fevereiro de 2022, que visa regulamentar as Leis nº 7.116/1983 e nº 9.454/1997, estabelece critérios para a confecção do novo documento de identificação do brasileiro e institui o Serviço de Identificação do Cidadão como o Sistema Nacional de Registro de Identificação Civil. Há notícia de que o Distrito Federal e os Estados do Acre, Goiás, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul começaram a emitir a “nova carteira de identificação         nacional”          (Disponível          em:          https://www.gov.br/economia/pt- br/assuntos/noticias/2022/julho/nova-carteira-de-identidade-nacional-cin-comecara-a-ser- emitida. cesso em 11.nov.2022), em substituição ao Registro Geral (RG).

O novo modelo de Carteira de Identidade, que adota o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) como registro geral, único e válido para todo o Brasil, exige a inclusão do nome de registro, de maneira que preceda o nome social, assim como a inserção do sexo (aparentemente biológico). O fato de o nome de registro passar a compor o mesmo espaço do nome social, em posição de destaque, aliado à limitação da solicitação de inclusão do nome social à base da receita federal, intensifica a repulsa da iniciativa.

De acordo com o Decreto nº 10.977/2022, o nome civil e o sexo serão considerados informações essenciais (art. 11, inciso V), enquanto o nome social será incluído, facultativamente, a pedido do interessado (art. 13). Confira-se :

Art. 11. A Carteira de Identidade conterá: […]

V – o nome, a filiação, o sexo, a nacionalidade, o local e a data de nascimento do titular;

Art. 13. O nome social será incluído mediante requerimento, nos termos do disposto no Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016.

  • 1º A inclusão do nome social ocorrerá:

I – mediante requerimento escrito e assinado do interessado; II – com a expressão “nome social”;

  • sem prejuízo da menção ao nome do registro civil da Carteira de Identidade; e
  • – sem a exigência de documentação comprobatória. (grifos nossos)

Essas exigências, contudo, implicam em exposição vexatória e inegável constrangimento à população LGBTI+, principalmente a pessoas trans, sobretudo àquelas que não querem ou têm dificuldades em realizar as mudanças concernentes ao nome e/ou gênero registral.

A discriminação e inquirição que expõe essa parcela da população às diversas violências, humilhações e tratamentos degradantes, violam o direito à autodeterminação identitária dessas pessoas.

Atenta a esse cenário, a PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO (PFDC), com o auxílio do seu Grupo de Trabalho “População LGBTI+: Proteção de Direitos”, vem a público reforçar pontos importantes à discussão e manifestar seu posicionamento a respeito do tema.

A Constituição Federal (CF) proclama que a República Federativa do Brasil tem como fundamento a dignidade da pessoa humana e, como objetivos, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, que promova o bem de todos, sem qualquer forma de preconceito ou discriminação, de forma a garantir a igualdade (arts. 1º, III, 3º, I e IV, e 5º).

O direito à igualdade, portanto, consiste na exigência de um tratamento sem discriminação, que assegure a fruição adequada de uma vida digna. Trata-se de uma igualdade que busca o reconhecimento de identidades próprias, distintas dos agrupamentos hegemônicos.

O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275, reiterou que o direito à igualdade sem discriminações abrange a liberdade de identidade de gênero, de modo que cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Assim, a pessoa não deve provar o que é, e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental.

Em que pese a ausência de menção expressa na Constituição da República (CR), a orientação sexual e a identidade de gênero são reconhecidos como fator de discriminação pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992) e pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992).

A identidade de gênero revela-se, assim, como elemento fundamental da personalidade do indivíduo e, portanto, imprescindível ao livre desenvolvimento existencial da pessoa humana. Logo, é dever do Estado reconhecer e validar a identidade da pessoa, enquanto resultado de um processo individual de autodeterminação, bem como garantir meios para o desenvolvimento efetivo das potencialidades do ser no meio social, de maneira a promover o respeito e assegurar a proteção da livre expressão identitária.

Nesse viés, merecem destaque os Princípios de Yogyakarta , que compilam e reinterpretam os direitos humanos aplicáveis a situações de discriminação, estigma e violência experimentados por grupos, em razão de sua identidade de gênero e de sua orientação sexual, já utilizados, como vetor interpretativo, pelo STF em suas decisões

v.g. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 527, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4.275, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e Mandado de Injunção (MI) nº 4.733.

Com base nesses princípios, a identidade de gênero está conceituada como “a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos” (Disponível em: http://yogyakartaprinciples.org/wp- content/uploads/2016/10/principios_yogyakarta-Portugues.pdf. Acesso em 18.nov.2022).

Enquanto expressão da identidade do indivíduo (Código Civil, art. 16), o nome é capaz de individualizar e situar a personalidade no mundo, bem como produzir reflexos no ordenamento jurídico, de forma a se compatibilizar com a identidade de gênero, que não é determinada com o nascimento e transcende o caráter estático do nome civil.

O nome civil é o nome designado no momento do nascimento do registro do indivíduo no Cartório de Registro de Pessoas Naturais. Já o nome social é definido pela denominação na qual as pessoas se identificam e são reconhecidas nas relações sociais, de maneira que seu uso independe de registro em qualquer documento, à vista de prevalecer a manifestação de vontade, oriunda da autoconstrução identitária.

A partir dessa premissa, o uso do nome social por pessoas trans, que não se identificam com o nome e/ou o sexo registrais, integra o processo de reposicionamento dessas pessoas dentro da estrutura social, como aspecto ao pleno desenvolvimento do indivíduo, já que a existência humana é necessariamente uma existência expressiva, observados os limites constitucionais previstos.

Com a averbação da alteração do nome e/ou gênero em cartório, independentemente de redesignação do sexo biológico, o nome pelo qual a pessoa trans se identifica deixa de ser nome social e passa a ser o nome civil, de modo que ocasiona, necessariamente, a alteração nos documentos pessoais e nos demais registros identitários, sendo vedadas as informações que possibilitem discriminações de qualquer espécie.

A possibilidade de retificação do nome e/ou marcador de gênero é um direito e não uma obrigação das pessoas trans, de forma que, independente de declaração documental, a pessoa deve ter sua identidade de gênero respeitada, bem como assegurado o nome social, com o propósito de preservar a autodeterminação identitária.

Embora, atualmente, a adoção do nome social não seja obrigatória, diversos documentos oficiais permitem tal inserção (CPF, título de eleitor, cartão do Sistema Único de Saúde, documentos de instituições financeiras e educacionais). Nota-se que o campo “sexo” não é um item requisitado no atual Registro Geral (RG) e os campos “nome social” e “nome de registro” aparecem em páginas diferentes, o que reforça a constatação de que o novo modelo de Carteira de Identificação, previsto no Decreto nº 10.977/2022, constitui um verdadeiro retrocesso na proteção e garantia de parcela da população historicamente vulnerável.

Justapor o nome civil e o nome social no mesmo documento, conforme estabelece o mencionado Decreto, desconsidera o papel do nome social de promover a igualdade e a não discriminação da população LGBTI+ à vista da realidade social, na qual a incompatibilidade entre a imagem corporal representada pela pessoa trans e o nome em seus documentos gera, constantemente, constrangimentos e situações de transfobia.

Importante lembrar que, segundo o entendimento do STF, condutadas homofóbicas e transfóbicas se enquadram nos crimes previstos na Lei nº 7.716/1989 e, no caso do homicídio doloso, constitui circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe. Isso porque o conceito de racismo ultrapassa aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos e alcança a negação da dignidade e da humanidade também de todos os grupos vulneráveis (Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp? idConteudo=414010. Acesso em 18.nov.2022).

No âmbito do Poder Executivo federal, o Conselho Nacional de Combate à Discriminação – órgão colegiado atualmente integrante da estrutura do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) – editou a Resolução nº 12, de 16 de janeiro de 2015, por meio da qual, ao estabelecer parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais nos sistemas e instituições de ensino, recomenda a “utilização do nome civil para a emissão de documentos oficiais, garantindo concomitantemente, com igual ou maior destaque, a referência ao nome social” (art. 5º).

Em atenção a essa rede de proteção de direitos da população LGBTI+, também foi editado, em 28 de abril de 2016, o Decreto nº 8.727, que permite o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Na esfera do Poder Judiciário, o Provimento nº 122, de 13 de agosto de 2021, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) permitiu às pessoas intersexo o direito de fazer constar em seus assentamentos “sexo ignorado”, de forma a assegurar o direito à própria identidade e à inclusão social do grupo.

A utilização do nome de registro precedendo o nome social, portanto, não apenas configura flagrante violação do direito à autoidentificação da pessoa trans, como invalida a sua própria necessidade de uso, além de abrir perigoso precedente para a exposição vexatória de um nome que não representa a pessoa que se deseja identificar.

Especificamente quanto à exigência de inclusão do sexo biológico, além de não conter qualquer necessidade administrativa ou burocrática que a justifique, estimula violações dos direitos humanos das pessoas que apresentam um sexo registral diferente da sua identidade e expressão de gênero.

Da mesma forma, as violações se estendem às pessoas intersexo, que são aquelas que nascem com alguma variação natural nas características do corpo que são atribuídas a sexo (genitálias, gônadas, cromossomos e resposta hormonal) de forma a não serem contempladas pelas concepções binárias que são típicas sobre como deve ser o corpo masculino ou feminino. É que as características morfológicas não são determinantes para o reconhecimento da identidade do indivíduo, de forma que não cabe ao Estado, ainda que indiretamente, constituir a autoidentificação.

Além dessas ponderações, contata-se ainda a ausência de registro da participação e/ou diálogo da administração pública com entidades representantes da comunidade LGBTI+, de modo que uma imposição heterônoma de normas de gênero e de orientação sexual, em desacordo com a autodeterminação, sequer foi avaliada por grupos, direta ou indiretamente, afetados pela norma.

Rompeu-se, desse modo, com os mecanismos de participação social na gestão democrática das políticas públicas, os quais constituem importante instrumento democrático estimulado fortemente pela Carta da República.

Nesse contexto, firme nas considerações acima expendidas e no intuito de contribuir para a construção de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social (Preâmbulo da CF), a PROCURADORIA FEDERAL DOS DIREITOS DO CIDADÃO (PFDC) apresenta esta manifestação técnica, com o objetivo não apenas de externar seu posicionamento, mas, sobretudo, de enriquecer os debates em torno do reconhecimento da inconstitucionalidade e inconvencionalidade dos critérios previstos no Decreto Presidencial nº 10.977, de 23 de fevereiro de 2022, para a emissão da nova Carteira Nacional de Identificação.

Brasília, na data da assinatura eletrônica.

Carlos Alberto Vilhena

Subprocurador-Geral da República

Procurador Federal dos Direitos do Cidadão

 Lucas Costa Almeida Dias

Procurador da República

Coordenador do GT LGBTI+: Proteção de Direitos da PFDC

VOCÊ TAMBÉM PODE GOSTAR DESTES ARTIGOS:

COMENTÁRIOS:

Nenhum comentário foi feito, seja o primeiro!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *